Parafraseando um professor que tive na Universidade, censurando o calão, a profana brejeirice e adaptando ao universo dos clássicos: "Um homem é capaz de atravessar um mar de piranhas se houver automóveis do outro lado". Estou de volta à Madeira para pôr à prova este manifesto de sabedoria docente, em mais um fim-de-semana de lar, bar e mar no Madeira Classic Car Revival.
Ainda só vamos para o segundo parágrafo desta reportagem e atrevo-me a lançar uma citação de outro grande mestre, ainda que com mais classe: Ferdinand Porsche uma vez disse (em alemão) que “Refazer é fácil. Melhorar é bem mais difícil”. O Clube Automóvel Clássico da Madeira (CACM) e a agência de promoção do turismo da Madeira neste aspecto são um exemplo da consistência e do saber implementar melhoramentos incrementais. Tal como o popular modelo 911 da marca de Estugarda se soube adaptar e evoluir passo a passo com o passar das décadas, ainda que mantendo a fórmula base, quem sabe, estarei eu daqui a 50 anos a escrever-vos mais uma vez sobre o Revival. A não ser que a Inteligência Artificial seja apropriada de olfato e aprender a sentir o cheiro a maresia e a octanas, ou de paladar para saborear um delicioso bife de atum ou refrescante poncha, será sempre preciso um humano para, ano após ano, vos inundar os sentidos com esta celebração no meio do Atlântico.
Uma voz familiar
“Viajaste para a Madeira de mota?” Pergunta uma voz familiar, mal piso a sala de jantar do Il Vivaldi aquando da chegada ao Funchal na sexta-feira. Já é tradição ser o último a chegar ao jantar de recepção, um jantar onde são convidados os membros da organização e jornalistas. O meu habitual estado de surdez e desorientação pós-voo exigiu de mim vários ciclos lunares para perceber a piada. Era dirigida ao meu casaco de napa preto. Sou fã de “piadas de pai” e esta é apenas mais uma que revela o nível de acolhimento e à vontade com que me sinto quando sou recebido na ilha por este grupo de amigos. No meio da gargalhada geral, o Martim - o melhor assistende de viagens do hemisfério-norte e parte da organização - ainda me diz: “Bem-vindo à Madeira, Joel. Fez boa viagem?”. Só porque alguém precisa manter o profissionalismo.
O Revival é uma celebração dos automóveis e da história. Contudo, sem pessoas, não haveria nada para contar. Ao volante da organização, tive oportunidade de conhecer pessoalmente Miguel Gouveia, o novo presidente do Clube de Automóveis Clássicos da Madeira, transmitindo-me um contagiante entusiasmo sobre esta nova etapa na vida do clube e do festival. Uma de várias caras amigas que fazem este festival, como o incurável apaixonado Alfista Marco Pestana, o já mencionado Martim Noronha, o grande anfitrião Eduardo Jesus e algumas novas caras como Bruno Fernandes, ou "Zuka" - como gosta de ser chamado - também ele em “estado febril” em antecipação ao festival. Na equipa do sotaque menos carregado, os amigos Salvador Patrício Gouveia e João Lacerda garantiram que não sobraria um momento normal e pacato durante o fim-de-semana. Para terminar o cardápio, e conseguindo chegar mais atrasado que eu, Jorge Gabriel, secreto apaixonado por automóveis, e o apresentador de televisão pública que veio emprestar a voz ao Revival.
Três vozes menos familiares
No meio de tantas caras conhecidas, identifiquei três com um sotaque ainda mais estranho que o do ilhéu: Uma delas era de Aaron McKay, jornalista para a inglesa Classic & Sports Car. Outra de Adrien Malbosc da francesa Auto Retroviseur, e a última do mais falador de todos, Krzysztof Kowalski da revista polaca Auto Świat, sobrinha da alemã Autobild. A fechar o círculo de imprensa encarregue pela reportagem do evento, estaria eu como convidado representante dos meios nacionais da especialidade, a revista Topos & Clássicos e o site do Jornal dos Clássicos. Durante longas conversas à mesa, trocamos impressões sobre o estado da arte da cultura do automóvel clássico em cada um dos nossos países, e eu, estando na Madeira, não poderia deixar de lhes apresentar algumas iguarias locais, especialmente um líquido doce e amarelado, ao qual após várias tentativas falhadas de soletrar, conseguiram verbalizar no seu sotaque centro-europeu como “pun-chá”.
Os visitantes, assim como peões que atravessassem a praça do povo ou a avenida do mar durante o fim-de-semana, seriam surpreendidos por uma espécie de gaivota rara. O Mercedes 300SL “Asa-de-gaivota” atraiu milhares de curiosos, que pararam para uma obrigatória fotografia. Para além deste automóvel cedido pelo Museu do Caramulo, viajando num contentor semelhante, a barchetta de produção nacional Dima, trazido por Pedro Filipe e Margarida Patrício Correia, fez furor entre os apreciadores mais especializados, e em particular ao Aaron McKay. Mas voltaremos a este ponto num instante.
O Revival é um livro de receitas
Como num bom livro de receitas, o Revival sabe que a qualidade e quantidade certa dos ingredientes são o segredo para uma boa refeição. Qualquer improviso é bem vindo, mas só se é estritamente necessário. Como tal, contamos mais uma vez com um espaço dedicado a Automobilia, não no seu formato tradicional de venda de peças, mas sim, como costume, numa espécie de galeria de arte em que os autores mostram os seus últimos restauros de peças, veículos e memorabilia relacionada com os automóveis. Este ano a cargo de Pedro Freitas e Leonardo Sargo, estes dois jovens que iniciaram o projecto pessoal “Perfected Garage” mostraram vários restauros de peças de colecionador. O concurso “Vestir à época” está de regresso, complementando a alfaiataria de tecido com a de chapa, nos veículos a exposição no Best of Show - A maior atração deste festival.
O Best of Show é um concurso de elegância em pleno epicentro do acontecimento rodeado por todos os clubes, com cerca de 400 automóveis que todos os anos alinham pelos jardins da Avenida do Mar. Centenas de candidatos que um dia podem esperar estar a concurso. Nos automóveis, o vencedor elegância - Troféu “Barceló Funchal Old Town” foi para Porsche 356 S de 1963, pertencente a Emanuel Rebelo. Na categoria de originalidade, levou o troféu Grupo Sousa, um Lincoln Continental Mark V de 1979 pertencente a Michal Wrobel que mal coube no palco dada a sua dimensão. O grande vencedor do Best of Show - Troféu Turismo da Madeira seria um MGB de 1967 absolutamente irrepreensível, propriedade de Luís Paulo Noronha. Para além dos automóveis, foram ainda atribuídos os habituais prémios a restauros de motas, bicicletas, e prémios para as melhores indumentárias.
O miradouro secreto
Com o tradicional Gin e salgadinhos, dá-se por fim ao primeiro dia intenso de festival, mas nem tanto da noite. Como é tradição em todas as minhas visitas ao Madeira Classic Car Revival, calções de banho são obrigatórios, e ouvi dizer que havia festa na piscina panorâmica no terraço do Barceló, hotel a estrear onde fiquei alojado. Contudo, não era para ser. O Aaron McKay, jornalista da Classic & Sports Car, fascinado pelo Dima, teve a ideia de fazer um ensaio improvisado, faltando-lhe apenas um fotógrafo para o efeito. Tendo já trocado impressões com ele durante o almoço, fui convidado de imediato, apenas restando decidir onde e como íamos fotografar. Recorremos desesperadamente ao nosso agente de viagens, Martim Noronha, e passados minutos estou eu pendurado na mala do seu Mazda 3 de ir ao pão, a fotografar o Dima em andamento. Pelo Funchal acima até ao miradouro Vale das Neves, foi com uma vista absolutamente inacreditável que durante as últimas horas de sol, fotografei esta peça de engenharia nacional, obra do catalão radicado no Porto, Dionísio Mateu, e que percorrerá o mundo numa das próximas edições da Classic & Sports Car, uma revista familiar aos fãs de clássicos mesmo em território Nacional.
Rampa dos Barreiros
O último dia do Madeira Classic Car Revival é sempre pautado pela Rampa dos Barreiros, com dezenas de participantes nas várias categorias. A abertura da rampa seria dada pelos ilustres convidados no Mercedes 300SL e DM. Como habitual, a partida é dada na Avenida do Mar, junto à praça do povo, e segue toda a marginal em direcção aos barreiros, acabando a PEC (prova especial cronometrada) aos portões da Quinta Magnólia. Quase como estafetas entregando o testemunho simbólico para o Clássicos na Magnólia, outro excelente evento dedicado aos clássicos que sucede poucos meses após o Classic Revival, ali mesmo nos jardins da quinta.
Uma rampa diferente das outras
Portugal possui um polvilhado de rampas belíssimas por todo o seu território, seja a Rampa da Serra da Estrela, a Rampa da Foz do Arelho, Falperra, Caramulo ou Arrábida. Todas elas têm algum detalhe que as torna especiais. Seja a vista de cortar a respiração na Arrábida, seja o público endiabrado e a velocidade da Falperra. No caso dos Barreiros, o misto entre rampa urbana com brisa marítima, que se arrasta pela promenade Madeirense desde a zona velha, e o ambiente relaxado que se sente entre participantes e público, lembra-nos que estamos num tipo de rampa diferente. Uma em que a diversão se sobrepõe à competição. Em qual outra rampa encontraríamos um sinaleiro em plena via de trânsito a tourear os concorrentes que aproveitam o pivot para uns bons peões e borracha queimada? Para deleite de todos os espectadores ali presentes, a meros centímetros de toda a acção, tudo isto é permitido.
Antes de me despedir do Madeira Classic Car Revival, arriscadamente aceitei ir com um amigo local provar uma poncha especial algures numa taberna nas imediações do aeroporto. O bom dos casebres na ilha é que qualquer um deles tem uma vista para o mar. Algo que no continente geralmente está reservado a bares gentrificados onde tudo é demasiado genérico e dispendioso. Como sempre, subestimei o poder da poncha, mas tirei um ensinamento: Pela primeira vez na vida não senti a falta de espaço ou conforto dos bancos da companhia aérea low-cost. Não senti nada, na verdade. Esta dica é de graça.
O Madeira Classic Car Revival regressa em 2024, nos dias 24, 25 e 26 de Maio.
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