Uma criança faz amigos partilhando gomas no recreio da escola. Na juventude, ajudamos os nossos compinchas fazendo de wingman nas saídas à noite. Como adultos, o nível de confiança e cumplicidade demonstra-se assim: Ajudando a encontrar carros dos seus sonhos.
O Filipe Soares é um dos bons amigos que fiz através dos clássicos. Conhecemo-nos por acaso em Junho de 2016, quando morava na cidade de Aveiro, durante o fim-de-semana em que ajudei a trazer um encontro nacional de Toyota Starlet à cidade do sal, da ria e dos canais. A nossa filosofia e saber estar neste meio ditou que mantivéssemos o contacto, partilhando posteriormente vários quilómetros de estrada em encontros de descapotáveis organizados por ele.
O desastre
Em Outubro de 2017, depois de um acidente que ditou o fim da minha história com o pequeno Starlet Ep70 que possuía até então, o Filipe acabou por salvar o dia de duas formas, uma direta e outra indirecta. A quantidade de contatos que recebi após criar o anúncio do salvado foi avassaladora. Afinal de contas, todas as partes que não foram atingidas pela árvore da rotunda da Rua Mário Sacramento, estavam como novas, fruto de 2 anos de dedicação intensa à sua manutenção. Se fosse hoje, o mais inteligente a fazer seria desmontar o carro e vender às peças. A procura é imensa, ainda para mais tratando-se do modelo XL, com nível superior de acabamentos. Contudo, o timing não podia ter sido pior. Estava em processo de mudança de casa na minha nova cidade, com vários compromissos de trabalho a decorrer, e o facto de estar tão abalado pelo sucedido fez com que quisesse fechar aquele capítulo o mais rapidamente possível e seguir com a vida. Um dia liguei ao Filipe e perguntei-lhe diretamente se não me queria ficar com o carro. Afinal de contas, ele é um coleccionador de Toyota, e andava também à procura de um ep70. Sabendo disto, vendi-lhe a um preço verdadeiramente simbólico, sabendo que ia dar bom uso às peças, quando encontrasse o carro base. Não sei porquê, mas na altura, senti que lhe fiquei a dever um favor.
Quando se fecha uma porta, abre-se uma janela, e esta experiência deu-me um empurrão para avançar com algo que queria experimentar há muito: Possuir um clássico no sentido tradicional do termo: Anterior a 1980, tração traseira, pára-choques cromados, volante em baquelite, travões sem servo-freio, bancos em napa, etc. Conseguem entender: o mais arcaico que encontrasse. Tinha umas poupanças guardadas, e lancei-me ao desafio. No dia 4 de Novembro, um sábado, estava eu e o meu pai a caminho de Santa Eulália, Arouca, para fechar o negócio do meu atual KE20 cinza-prata. O meu pai voltaria para o Porto e eu seguiria caminho para o Caramulo, onde fui fotografar a colecção de brinquedos do museu. Decidi ignorar totalmente se o Corolla estava ou não em condições de fazer 400km no seu primeiro dia de rodagem depois de vários anos parado. O entusiasmo era demasiado para não o fazer. No dia seguinte, 5 de Novembro, Domingo, tinha o convite do Filipe para participar em mais um dos seus encontros “de cabelos ao vento”, exclusivos na altura apenas a Mazda MX-5.
Um pedido inocente
Terminado o passeio, o Filipe estava desejoso para ver com os próprios olhos a nova aquisição e não demorou dez segundos a comentar: "Preciso que me ajudes a encontrar uma coisa destas para mim". Assumi que ele estava a brincar, mas com o passar dos meses, apercebi-me que a intenção era real. O meu KE20 foi encontrado em tempo recorde: 2 meses. Fulcral nesta busca foram os meus amigos Miguel Vale, Pedro Meixedo e João Freire do AJA - Amigos dos Japoneses Antigos, clube de clássicos do qual me orgulho de ser sócio. Com eles apercebi-me que quanto mais popular e comum é o clássico, mais exemplares existem à venda, e proporcional à quantidade, é a probabilidade de sermos “enganados” se não conhecermos os detalhes e fraquezas destes modelos. Todo o conhecimento que obtive do AJA, e da própria experiência de possuir um exemplar, fez-me ficar confortável para retribuir o favor na minha nova missão: Encontrar um KE20 para o Filipe. Lembro-me de analisar anúncios de Viana a Faro. Porto à Guarda. Às vezes partilhados pelo Filipe, outras vezes sugeridos por mim. Mas havia sempre qualquer coisa que deitava o negócio abaixo: Restauros mal feitos, preços exagerados, número errado de portas, detalhes incorretos, vendedores duvidosos, fotos com 10 anos.
Um dia abri uma notificação de um site de anúncios online e dei de caras com este exemplar de 1973 que vê nas imagens, fase 2, deluxe, duas portas, todos os frisos e detalhes corretos (à excepção dos tampões das rodas), e, convenientemente não estava guardado num palheiro em Reguengos de Monsaraz, mas sim aqui ao lado em Gaia! Enviei imediatamente mensagem ao Filipe e o interesse foi instantâneo. Várias visitas depois, e conseguindo negociar muito bem o preço, um dia acordo com uma mensagem que dizia: “Joel. Bom dia! Perdi a cabeça e tenho agora mais um Toyota na coleção! O tal KE20. Tu és o culpado. Mas agradeço-te na mesma. Abraço”. Ainda meio a dormir, não me lembro se me senti contente, ou com medo por ter perdido um amigo. Dias depois estávamos a marcar uma sessão informal na oficina do ACP no Porto. A inveja é um sentimento muito feio, eu sei. Mas há alturas em que não me esforço para a esconder. Este deluxe está impecável e gostava de o ter encontrado para mim.
Três anos e meio depois, incontáveis anúncios e pretendentes falhados, está por terminada esta busca, estou muito invejoso, mas feliz. Acima de tudo: O favor está retribuído.
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