Norte Classic – Veni, Vidi, Vici

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By Joel
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April 7, 2023
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11 min read
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Fotógrafos a fotografar fotógrafos. "Isto é uma classe que se alimenta a si própria." Foi a resposta do Bernardo Lúcio, colega e fotógrafo oficial de serviço no Norte Classic, após lhe ter enviado uma foto mal-amanhada que tirei a sair da pré-partida, no arranque para um dia de correria. Esta é a dura realidade de um profissional contratado para dormir pouco e comer à pressa durante três dias, contra todos os compromissos e obrigações que envolvem fotografar profissionalmente um evento com mais de 100 automóveis, com pouquíssimas oportunidades para desfrutar todos os luxos e mimos que um programa destes oferece aos seus participantes.

A resposta do Bernardo tem um contexto. Academicamente, o fotógrafo ou repórter deve retirar-se da matéria que está a cobrir. Vê-la de fora, abster-se totalmente da experiência para garantir a imparcialidade, e este é um balanço difícil de dominar. Quando recebi a chamada para escrever sobre o Norte Classic pela Topos & Clássicos, assumi imediatamente que era um convite para viajar numa carrinha de assistência e acompanhar a caravana como jornalista. Não que fosse mau, muito pelo contrário: A reputação do Norte Classic é sobejamente reconhecida e invejada no ecossistema clássico nacional. Mas não. O convite seria mesmo para viver tudo enquanto participante.

Estamos em Braga

Acredito que para se escrever uma reportagem verdadeiramente pessoal e relevante sobre um evento, temos que fazer parte dele. Quanto mais de perto melhor, e a Portugal Classic não só nos abriu a porta, como nos serviu as chaves numa bandeja. Acesso total. Participei, registei, e ainda fui a bordo do meu Corolla KE20 com o meu amigo e navegador Francisco, de forma totalmente acidental, vencedor do rali na classe H e segundo à geral da modalidade turística. É sobre esta epopeia com um título sugerido por Júlio César no ano 47 antes de Cristo, que irei escrever as próximas linhas. Estamos em Braga, a Bracara Augusta, a cidade romana. E em Roma, sê romano.

Aposto que existe algum nome que a psicologia atribui a este fenómeno: Aquele de desejar que a previsão meteorológica seja fiável quando sugere bom tempo, e que seja imprecisa quando anuncia chuva e frio. A previsão de tempo para o Norte Classic era absolutamente miserável. Nem as toalhas de banho ultra-absorventes que coloquei estrategicamente na bagageira do Toyota seriam suficientes para aguentar três dias sem a mala se tornar num aquário.

Capitão Fausto, Caraté e Renas de plástico.

O check-in do Norte Classic foi organizado na atual discoteca “Lustre”, na Praça Conde Agrolongo em Braga. Um lugar no qual guardo com nostalgia três memórias peculiares: Ver Capitão Fausto no dia dos namorados; uma noite com 10 amigos vestidos de aprendiz de carateca no que mais parecia uma despedida de solteiro com bondage; até à história mais recente em que tentei com colegas de trabalho convencer a rapariga do bengaleiro que não havia nada de estranho em guardar uma rena gigante de plástico, acabadinha de “trazer emprestada” do jantar de Natal da empresa. Descansem, em 2022 sou um adulto responsável e gostava de vos garantir que esta visita foi bem mais civilizada, mas também não seria verdade.

Que tiro foi esse?

O Norte Classic tem uma planta perfeita de como construir um secretariado: Um triângulo perfeito composto por um espaço característico, brindes e champanhe. À chegada a conta-gotas (trocadilho intencional), os cerca de 100 participantes revezavam-se entre confirmar a inscrição, colar os autocolantes e fixar as placas de prova. À nossa equipa foi atribuído o número 160, curiosamente a velocidade máxima do Toyota (não que o tenha testado). Não só, mas segundo os registos, o meu nome durante o fim de semana seria Paulo, acompanhado da minha navegadora Maria, a bordo de um Porsche 944S. A nossa inscrição teria sido apenas uma de duas coisas a serem marteladas naquele dia. Sendo que a segunda nos obrigou a uma coca-cola bem fresca numa visita nostálgica ao McDonalds de Gualtar mesmo antes do jantar no Meliã Braga Hotel & Spa.

A qualidade e elegância do jantar ditaria a fasquia para o resto da semana. A cruzinha na vertente gastronómica estava garantida. Depois de um farto buffet e de muita Murganheira, Luís Brito, anfitrião e mestre de cerimónias, brindou os participantes com o discurso de boas vindas e o tiro de partida estava dado para um fim de semana verdadeiramente memorável. O tiro foi tão forte que ecoou na discoteca Setra onde fomos só beber um copo, talvez três tequilas e quiçá também um mojito, e quero jurar que no Domingo ainda conseguia ouvir o zumbido.

Um David entre Golias

A partida oficial para todas as etapas do rali seria dado junto ao requalificado mercado municipal de Braga, a cidade que serviria de quartel-general nos três dias do Norte Classic. É impressionante tal ambiente e aparato que a organização conseguiu criar na grelha de partida: Um pórtico insuflável gigante, uma verdadeira multidão a assistir, o speaker, e as várias dezenas de automóveis ao ralenti, alimentando aquele nervoso miudinho de quem está prestes a embarcar numa prova de regularidade e não quer falhar o primeiro cruzamento ou aquela figura.

Felizmente para a nossa inexperiente dupla, o road-book disponibilizado era exemplar na sua leitura e desenho. Eram 09:43:30 e, com um bocejo e alargada pausa, é anunciada a nossa partida “Paulo e Maria em Porsche…Perdão, Joel e Francisco em Toyota Corolla de 1979”.
Não julgo. Éramos o patinho feio num rali com um parque automóvel acima da média, preenchido com exemplares de todas as nacionalidades e eras da história automóvel, desde os Ford A "pré-guerra"; avançando para a era dourada dos turismos com vários Mercedes 190SL; misturando ainda vários desportivos como Chevrolet Corvette C1, Jaguar XK120, Porsche 356, Alfa Romeo 2600 Sprint, só para mencionar alguns. Uma pequena demonstração dos 38 bólides que alinharam na categoria desportiva, e dos restantes 66 na turística.

Páscoa antecipada

A primeira etapa apontou para norte, passando à porta do circuito Vasco Sameiro e seguindo fiel à temática do fim-de-semana, atravessando a Ponte romana de Prado sobre o rio Cávado. As estradas nacionais e municipais guiaram-nos por Cervães, Igreja Nova, passando ao lado de Poiares, até Durrães, onde fizemos uma pausa para visitar a fábrica de chocolate Avianense. Uma visita bem-vinda para acordar com um café em copo de chocolate, assistir a um workshop de chocolataria com direito a provas, e com direito a umas compras atrasadas de amêndoas e ovos da páscoa para levar à família.

Continuando a norte, cruzando o rio Lima uma primeira vez em Moreira de Geraz do Lima, aproximando-nos de Ponte de Lima pelo outro lado do rio, para a pausa de almoço. À chegada, estava programada uma visita cultural à vila. Contudo, e só agora que vos escrevo este texto, apercebo-me que as constantes paragens para fotografar a viagem, obrigaram-nos a falhar praticamente todas as neutralizações e atividades paralelas. Sabemos que um evento é bom quando não há sentidos que cheguem para absorver tantos estímulos.

O clique

Havia contudo uma atração cultural que nunca podíamos falhar: O almoço. Os automóveis ficariam estacionados na marginal de Ponte de Lima, proporcionando aos locais e turistas uma alternativa à oferta cultural local, que como sabemos, consiste exclusivamente de concertinas, bombos e papas de sarrabulho. Simultaneamente, os participantes seriam levados de autocarro até à Quinta do Outeiro, uma herdade lindíssima rodeada de jardins e pastagens, com um salão de refeições elegantemente rústico. Durante o almoço e totalmente ao acaso e para nossa surpresa, Ângelo Lage, navegador de Pedro Barreto a bordo de Mercedes-Benz 220, informa-nos que o nosso carro lidera a classificação da vertente turística.

Os tempos da prova estavam a ser controlados pela repetente MyTime, com a sua partilha em tempo real na aplicação móvel que mais gosto de pronunciar: "mistiempos.es". A partir desse momento fez-se um clique, e bastou um olhar cúmplice com o Francisco para decidir: Íamos correr para ganhar.

De Ponte de Lima seguimos pela N307 em direcção a Boalhosa, quando cortámos de novo para norte a caminho de Ponte da Barca. A qualidade da paisagem e das estradas tinha um valor cénico quase teatral. Subitamente a expressão “Ficar a ver a paisagem” torna-se na justificação perfeita para os nossos constantes atrasos. Quando pensávamos que o trajecto não poderia melhorar, eis que depois de Ponte da Barca, enveredamos por uma série de caminhos municipais que nos levam até Mixões da Serra, provavelmente o trecho mais característico de todo o rali. Proporcional à beleza, era o desafio para a mecânica das máquinas: O pequeno Corolla chiava, batia e rangia como uma Nau carregada de especiarias da Índia. Travões, suspensões, chassis, todos eles castigados numa tarde que pareceu alongar-se bem mais do que os cerca de 70km reais percorridos. 

Norte Classic

Norte com classe

Cumprindo a tradição, chegámos tarde à paragem em Vila Verde, no jardim da Praça da República e seguimos quase de imediato para a última neutralização do dia na Quinta de Amares. Neutralização é um termo demasiado ameno e aborrecido para descrever a nossa estupefação face à vista evocativa das pinturas impressionistas de Renoir ou Claude Monet. Uma quinta rodeada de vinhas, atravessada por um antigo aqueduto de arcos perfeitos ao estilo Romano, com o pôr do sol no horizonte, acompanhados por uns petiscos e vinho branco da região. O Portugal Classic sabe perfeitamente como acabar um dia estafante de forma verdadeiramente memorável.

Esperava-nos ainda no topo do Bom Jesus, um jantar de gala na colunata, um salão de refeições lindíssimo onde no final de mais um repleto buffet, foram distribuídos os prémios de participação, agradecidos os patrocinadores e organizadores, com vários discursos dos presidentes de câmara e intervenientes na organização do rali. Com medo de me tornar repetitivo, desta vez não houve festa noite dentro, e o zumbido de 6ª finalmente despediu-se de mim.

Da Falperra...

O último dia do Norte Classic começou num local muito familiar para mim e para o Francisco. Depois de três anos a partilhar casa em Braga, as estradas que ligam o centro da cidade ao Bom Jesus, Sameiro e Falperra tornaram-se passagens frequentes de finais de dia. A primeira e única PEC (Prova especial cronometrada) de hoje ditaria a nossa vitória ou derrota no rali. O navegador não estava muito preocupado, ao contrário de mim, que comicamente repetia previsões mentais em como o peso das malas do hotel, ou dos sacos de merchandising nos colocariam em desvantagem a subir a rampa, face aos outros concorrentes com automóveis mais potentes.

Devo adiantar que a nossa história com a Falperra é de certa forma atribulada: Da última vez que a subi foi de forma ilegal, infiltrado no desfile de clássicos da Rampa Internacional, alinhado à revelia da GNR, que se atrasou em nos dar acesso ao cortejo. Não seria a última vez que a Guarda Nacional Republicana nos tentaria estragar os planos. Os 54 cavalos DIN e os 1166 cc do motor 3K do Corolla não são adeptos de subidas, muito menos com pressa e a mala carregada. No momento em que devíamos arrancar para a PEC, uma carrinha de caixa aberta da Guarda coloca-se à frente, obrigando-nos a penalizar cinco a seis segundos no arranque. Limito-me de descrever os momentos seguintes com risco de perder pontos na carta, ou pior, acumular cadastro.

...ao Confurco

O trajecto de Domingo, apesar de curto e reservado à manhã, mostrou-se bastante entusiasmante pelo seu historial competitivo, fosse a passagem pela Rampa Internacional, como a travessia parcial da etapa do Confurco em Fafe, mitificada pelo salto, imagem de capa do WRC em Portugal. Esta etapa em troço de terra batida era opcional, e confesso que quando foi anunciada no jantar de Sábado, a minha reação foi descartar a ideia. O Corolla já tinha sofrido imenso durante todo o fim de semana, e a Topos & Clássicos não me patrocina a conta da oficina. Contudo, para efeitos fotográficos e de documentação, não vi como seria possível evitar este episódio. Não me arrependi. A vista do topo da serra é terapeutica, e a presença das ventoinhas eólicas, apesar de nem sempre bem-vinda, garante uma paisagem inegavelmente grandiosa em escala.

Consecutivas paragens para fotografar garantiram que, mais uma vez, não chegaríamos a tempo da neutralização em Póvoa de Lanhoso, seguindo directamente para o almoço em Fafe, na Quinta do Gandião, para finalmente ter o merecido descanso depois de um fim de semana tão intenso. Depois de uma última oportunidade para confraternizar com os outros participantes, foram entregues os prémios, incluindo um troféu exclusivo a Mercedes-Benz patrocinado pela marca. Uma longa cerimónia em que todos fomos vencedores. Claro está, uns mais vencedores que outros, devo rematar.

Do Norte Classic trouxe uma participação, novos amigos e um troféu. Acima de tudo, uma história imortalizada no papel e nos pixels do ecrã que está a ver. Devo um obrigado muito especial em nome da Topos & Clássicos dirigida ao Luís Brito pelo amável convite, e restante organização pelo excelente trabalho realizado, num rali que foi perfeito.

Tagged: 2022 · Corolla · Ralis
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